12.27.2013

Merde!


Publicado originalmente na Atualidades Ornitológicas
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Merde!

Cada troço mais diferente um do outro. O de sapo é melado, gosmento... De lagarta é seco, farinhento; do jacu um monte de caroço, coquinho. Da aranha, espirrado e do marimbondo, branquinho.

A análise das fezes dos animais da roça fornece um rico panorama das diferentes estratégias de sobrevivência e formas de alimentação. Por exemplo: existe a turma da bolinha, que inclui diversos herbívoros, coelho, cabrito, o tapiti (coelho do mato) a preá, e mesmo a capivara. Há também a turma da bolota, os cavalos e burros... e da bolotona, tão grande e mole que vira uma pasta, obra de boi e vaca. Toda essa turma come capim empacota e devolve assim.


Lagartas também fazem coco de bola, uma certa textura, como amoras secas, do tamanho de grão de bico, já o mandruvá faz umas bolinhas pequeninas, grãozinhos. Se houver muita embaixo de uma árvore, é garantia que a maioria da folhas estarão destruídas. Em casos de infestação muito grande pode o chão ficar forrado e os galhos pelados. É incrível como retiram tudo das folhas que comem. E fazem um coco sequinho. Dizem que as lagartas são as grandes responsáveis pela conversão de proteínas na floresta. Transformam celulose em proteína, e fazem a alegria dos passarinhos. São tão boas na arte de comer que muitos vespas plantam seus ovos no seio das lagartas e deixam que elas alimentem seus filhos com suas tripas.


Passarinhos que comem lagartas fazem preto e branco. Outros comem frutas e devolvem os caroços inteirinhos, estercados, prontos pra brotar. Aves grandes como o jacu, aquelas galinhas pretas de papos vermelho, fazem um amontoado de caroço, algumas vezes tão grandes que é impossível não pensar no tamanho do jacu. Desempenham um papel importante na disseminação das arvores. Zoocóricas. Fumo Bravo, por exemplo, é uma árvore que nasce por toda parte, passarinho come o frutinho e sai semeando por ai, as sementes brotam, crescem, anos depois os passarinho (e netos) voltam e comem os frutos, espalham as sementes e tudo gira...
 

Comer besouros não é uma tarefa fácil. Pode até ter um suquinho gostoso lá dentro, mas aquela casca, ai! Se você reclama por ter de engolir sapos, não imagina o que os sapos sofrem depois de engolir besouros.
 

Repare no coco de sapo cururu, meio gosmento, do tamanho de um charuto, mas se tomar uma boa chuva, resseca e fica limpinho e ai da pra identificar todas as casquinhas de besouro que ele comeu... é um verdadeiro festival de asas, pernas e antenas.
 

Carnívoros têm coco fedido. Cão e, especialmente, gato. Mas também as galinhas e angolas. Tudo bem; se o cãozinho se alimenta de ração tudo o que se pode esperar e um monte amorfo quase isopor, o mesmo vale pra galinha e pro gato. Agora se a ração tiver sido temperada com umas minhocas ou passarinhos... fedor na certa... carne tem esse cheiro. O cheiro de jaguatirica é notado a muitos metros de distância. Titica de galinha é o mais fedido, mistura de cheiro ruim com a vergonha de ter pisado.

Embaixo de uma teia de aranha de muitos anos pode se perceber uma mancha esbranquiçada, cheia de espirrinho. Aranha faz coco em jorro.Assim como o marimbondo. Não nos damos conta pois muitas vezes fica mimetizado, mas se cultivamos esses animais ao redor de nossas casas em pouco tempo veremos seus detritos.


A vida é assim entra por um lado, sai por outro. Tudo se transforma e assim se perpetua. Tudo morre e renasce e tudo se modifica. Tudo a mesma merda.






Por que observo aves?

Eu observo aves porque me sinto só. 

Solitário enquanto espécie, apartado da natureza pela cultura, isolado pela linguagem. Humanos podem conversar entre si, mesmo inimigos, mesmo que separados pela história, cultura, política. Entre dois humanos sempre existe a chance de uma conversa. A linguagem que nos une como espécie é a mesma que nos aparta da natureza. 

Diariamente, há mais de 50 anos, potentes radio-telescópios auscultam os céus em busca de algum sinal de uma vida inteligente (que tenha uma linguagem). Nada foi encontrado, nem um simples sinal, apenas silêncio. ETs também são parte da natureza e nem mesmo eles vieram falar conosco. Nada! Silêncio! Estamos sós! Terrivelmente sós.


Sabemos que baleias, golfinhos podem se comunicar, sabemos que pombos podem transmitir informações por vias culturais, mas nada disso é suficiente para nos integrar ao mundo animal. Continuamos absolutamente solitários em nosso balbucio. Claro que o comportamento animal é complexo e os significados inúmeros; claro que podemos entender, estudar e nos especializar em interagir com eles. Treinadores conhecem a fundo seus animais companheiros de trabalho. Etologia é uma ciência séria e muito aprendemos com o seu estudo! Ela é uma forma de manifestarmos a nossa compreensão dentro da nossa cultura. No entanto, falo aqui de uma outra dimensão maior que a etologia. Falo de um olhar não correspondido, de uma barreira imensa que nos separa. 



Pode-se retrucar que se eu tivesse um pouco de amor no coração, veria que nossos cães e gatos, companheiros do dia-a-dia podem, sim, compreenderem nosso sentimento e mesmo comunicarem-se de maneira efetiva. Sim, concordo, mas isso não significa qualquer entendimento nosso com o mundo animal. Pelo contrário, significa sim um cruel projeção de nossa psique sobre indefesos animais. Pets são uma forma de escravidão de nossa afetividade. Seres que perambulam como zumbis, enroscando-se aos nossos pés, mendigando afeto e alimento. Gatos tem personalidade, cães tem sexto sentido e emocionam no noticiário das sete ao ficar dias e dias parados a espera do dono, que morto e enterrado, jamais voltará, mas afora o que projetamos de nossa linguagem sobre eles, afora a casca do afeto, tudo que resta é o silêncio. 


A mesma linguagem que nos une com os pets, é que os prende e os condiciona. A liberdade de um animal selvagem é, enfim, a liberdade de não nos entender. Ninguém em sã consciência perde tempo observando pets. Gatos não tem nada a nos dizer, além de pobres metáforas de nossa subjetividade. OK, ok, com um pouco de boa vontade podemos ver uma pálida sombra do que foi o comportamento selvagem nesses animais domésticos. Domesticar é uma questão de compreensão e linguagem. Ninguém observa animais domésticos. Quando olhamos o gato fofinho que dorme enroladinho, observamos o humano que invade sua felina natureza perdida. Domesticar uma ave, então, é a suprema crueldade cognitiva, é roubar o direito a uma vida autônoma.

Mas veja bem, um mero tico-tico livre, selvagem, tem um repertório infinitamente mais rico se comparado com meus quatro gatos, que ainda assim insistem em comê-lo.



Observamos aves, pois elas nos contam histórias, nos abastecem de metáforas e de conhecimento. Observo aves, pois gosto do selvagem, do não humano. Quero enfim, me apartar da cultura. Entre um homem e uma ave livre não existe comunicação possível além do distanciamento e temor. Exatamente isso é que me encanta. Ao olhar uma ave livre imploro por esse estranhamento, que me inutiliza a cultura e me devolve à condição de natureza.








Observo aves, pois preciso me sentir vivo. Saber que alguém ainda é livre, que pode e vai voar, e sumir, desaparecer. Odeio ser guiado, passear com um guia ornitológico. Amo e odeio devo confessar. Odeio porque eles sempre sabem quem canta, e fazem aparecer aqui quem cantou. Que coisa mais aborrecida, previsível. Não! Quero andar sozinho, olhar pras aves com o mesmo sentimento que olho as árvores. Já viu alguém fazer playback de árvores? Algum Ipê respondeu? Alguma Peroba veio ver o que se tratava? Não! Não quero mais fazer playback, pois nesse simples ato a gente propõe uma comunicação com as aves. 


Não quero falar nada com os passarinhos, nem que estou invadindo seu território. Nem dizer que sou mais macho do que eles. De maneira alguma. Isso faria perder toda beleza e todo sentido do ato de observar.

Olho pra um passarinho pra esquecer da linguagem, pra esquecer do amor, do afeto, pra esquecer do humano. Quero ler somente seus traços de identificação, seu shape e fields marks. Quero que ave voe antes que eu a identifique. Quero um mundo onde o mistério ainda tenha espaço.


Não quero ver quem eu não vi, não quero buscar quem eu não observei. Quero andar no mato, livre e sentir que alguma liberdade ainda restou, liberdade de não saber, de não entender, de não identificar. Tudo bem se a minha lifelist sair prejudicada, tudo bem se faltarem algumas espécies. Nada mais aborrecido que tirar o olho do passarinho pra olhar o livro. Odeio guias de campo. Olhá-lo é perder tempo, perder concentração, perder o foco. Enfim, perder a urgência. Por isso mesmo eu odeio lifers. É muito melhor observar os passarinhos que já conheço e não perder tempo olhando pro livro pra tentar aprender ali na hora. Não quero tirar meu foco. Quero meus olhos livres de qualquer guia. Quero meus passinhos soltos, livres de qualquer linguagem.


Enfim, observar aves me traz o sentimento de urgência da beleza. O efêmero da vida. Ver ou não uma aves é questão de segundos. Elas voam... Se agora estão visíveis, em seguida desaparecem. É urgente desfrutar de sua beleza.




Grito Lancinante

Publicado originalmente na Atualidades Ornitológicas
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Grito Lancinante

Vista ao longe no alto de um morro, à direita, a pequena casinha domina a paisagem, destacando-se seu branco colonial contra a mata fechada. Ao fundo, no vale, a estradinha sinuosa que dá acesso a esse paraíso natural. Somente uma que outra curva aparece entre a vegetação. O riacho e suas pedras, se esgueiram por entre o vale e a mata, Uma pinguela faz o acesso à casinha e é nela que vemos um carro estacionar, depois de percorrer todo o vale, encoberto pela vegetação. Descem um casal e dois filhos que chegam para uma noite no pequeno chalé.

A pinguela tortuosa mete medo nos adultos e desperta o lado aventureiro das crianças, mochilas nas costas, camisas xadrez, botas novinhas, todos aqueles detalhes distinguem o casal de urbanos dos habitantes da região.

 
O sol se põe por entre as árvores, seus últimos raios são admirados pela família, lá do alto da varanda da casinha, pendurada acima das árvores. A noite cai implacável. Escura, negra, profunda. Agora a casinha é delineada apenas pelo contorno luminoso e tremulante da janela e da porta. Lá no telhado uma fresta entre telhas cria um brilho inexplicável. Luz tênue, amarelo no fundo negro.

Olhos de horror se abrem à esquerda do quadro... Um grito lancinante no meio da mata.
Barulho de um tremendo susto dentro da casa. Vemos olhos arregalados que enchem a janela. Um homem acende a lanterna e sai pela porta... A luz da lamparina espalha uma aura amarela na pequena porção da noite que mal consegue iluminar.

Trêmula, a luz da lanterna escrutina a escuridão. Partes da paisagem se revelam, outras permanecem misteriosas, encobertas na escuridão total.O medo e a insegurança diante dos perigos da noite transparecem no movimento trêmulo da luz da lanterna. Busca, busca, mas nada encontra... Volta para casa inseguro, caminhando de costas.

Todos estão na porta: O pai tateia o chão em busca da lanterna caída, a mãe segura a última vela. De repente mais um grito, o susto. A confusão derruba a vela. Escuridão total. Gritos das crianças revelam o estado de espírito da pobre família. Pai tenta acalmá-los. Em vão. A mãe tem crise histérica.

O escuro impede a compreensão do que se passa. Choro miúdo, passadas carregadas, a família se retira da casinha, entra no carro e parte pelo meio da mata. Vemos pedaços da lanterna e do farol se movimentando na escuridão.

O silencio se restabelece. Grilos ao fundo, o ruído do riacho, a luz de um novo dia se aproxima. Por entre os morros, mais um grito, muito próximo. Desta vez a luz permite vislumbrar uma árvore, é nela que vemos ao raiar do dia, uma coruja enorme. No toco seco vemos seu ninho.

Ela olha para o sol que se levanta e entra na cavidade onde vai dormir tranqüila, não sem antes dar mais um grito lancinante...


Porque passarinhar?

Oito Bons Motivos para Passarinhar

Versão livremente adaptada

1) Passarinhar aguça sua vista. Antes que você perceba, você aprende a ver a marca frontal de um Petrim, para distinguir do sempre tão ligeiro Pichororé, antes mesmo que ele vocalize, ou ainda, ser capaz de detectar uma faixinha branca no peito daquele andorinhão que passa voando em cima de sua cabeça, a 40 quilômetros por hora.

2) Passarinhar incentiva você a explorar o mundo: Você navega pra além da costa em barcos de pesca fretados com uns pescadores estranhos que ficam se perguntando por que alguém iria gastar 300 dólares para não pescar, mas para observar um bicho chamado Pardela-de-óculos, que ao ser encontrado, finalmente,  depois de nove horas de maresia, sejam simplesmente uns pássaros escuros que mergulham pels das ondas e desaparecem em menos de um minuto.

3) Passarinhar traz um assunto para escrever sobre. "Querida Mamãe, Como você está? Nada de chuva aqui no sertão, mas o Tijerila já chegou e eu fiz umas lindas fotos…

4) Passarinhar faz de você uma pequena autoridade no seu bairro. Gente que você nunca viu vai aparecer, de repente, com um filhote de sabiá que caiu do ninho, ou te encontrar no feice e perguntar: "Qual é a envergadura de uma Harpia ? "

5) Passarinhar ajuda você a valorizar um momento - tipo ao cair da noite, em junho, por exemplo, quando você o encontra no galho seco de uma árvore, com sua plumagem cinzenta e rajada, impávido, imóvel, um olho fechado e o outro te observando, o seu primeiro Urutau.

6)
Passarinhar lhe proporciona oportunidades de conhecer alguém como o meu amigo Rick Simpson, que empenha toda sua energia para observar todos os maçaricos  e aves aquáticas do mundo ao mesmo tempo que arrecada fundos para sua conservação e ainda diz… eu vou continuar procurando aquele maçarico-colhelheiro só por mais quinze anos e se eu não encontrar… eu tentarei por mais dez anos… Se até lá eu não encontrar… acho que vou desistir.

7) Passarinhar faz você ser politicamente ativo. Você vai escrever
posts extremamente bem argumentadas, movidos a adrenalina, no seu facebook, ou para seu vereador/deputado exigindo que algo seja feito para que as pessoas parem de soltar fogos de artfício, prender aves em gaiola,  contra a construção de condomínios, barragens,  a aplicação de inseticidas, desmatamento... 

8) Por fim, Passarinhar pode salvar sua vida. Um dia você vai estar voltando para casa do trabalho, deprimido. Seu filho está com gripe, a porcaria do carro está cm a embreagem estragada… e amanhã é o seu aniversário. Outro ano se passou e mais uma vez você não triunfou na sua vida... em nada, na verdade.

Então você olhar para o céu em desespero e logo ali, bem em cima de sua cabeça, uma bênção especial do espaço aéreo da cidade, é o mais belo pássaro do mundo! Com a cabeça branca perolada, asas preto-e- branco, longo cauda bifurcada, ela circula lentamente, uma centena de metros de altura, comendo libélulas, arrancando as asas e deixá-los vibrar para baixo.

Você joga a sua pasta na sarjeta, pegue a primeira pessoa que encontra, e grita: " Um gavião-tesoura! Um gavião-tesoura!" até que ele, finalmente, olha para cima e pisca os olhos, e descobre de repente que ele deve comprar um binóculo e tornar-se ele mesmo um observador de aves.



versão livre do original by Jack Conner,