11.21.2006

Drogaditos! (confesso que vivi!)

Instalei um ponto de distribuição da droga, num beco escuro, abrigado do vento, em minha varanda. Aos poucos uma legião de dependentes descobriu a bocada. Toda manhã eles vão chegando e a cada novo carregamento formam filas desordenadas; ávidos, insaciáveis, constantemente brigando entre si. Totalmente alheios à minha presença.
Um deles logo me chama a atenção. É jovem, tem uma mecha azul na cabeça - como se fora um punk tardio. É sempre o primeiro a chegar. No início, arisco, altivo e independente. Agora não voa mais. Senta-se resignado próximo a varanda e fica me olhando com seus olhinhos miúdos, enquanto aguarda a próxima dose. Os dias se sucedem e o doce passear de flor em flor é apenas uma sombra de um passado longínqüo. Sua atitude mudou completamente e mesmo estando a uma distância segura posso perceber sua respiração desmedida, seu pobre coração em ritmo alucinado.
Aos poucos ele se tornou o dono do pedaço. Agressivo, ataca ao menor sinal de invasor. O bando porém se organiza. Enquanto um o distrai, os outros se fartam da glicose. Existem ainda os que chegam furtivamente, por trás do bebedouro. A disputa é grande e as vezes algum se machuca. Mas a dependência é mais forte nesses dias de inverno, enquanto a chuva redentora não vem despertar as grandes floradas. E eles insistem.
Os beija flores são animais de metabolismo incrivelmente alto. Historicamente souberam explorar na escala evolutiva, a novidade tecnobiológica do de seu coração de quatro câmaras. Verdadeiros motores alados, necessitam ingerir grandes doses de açûcar. Tornaram-se dependentes químicos.
Eles são lindos na sua árdua busca por alimento. Incansáveis voam de flor em flor por muitos quilômetros. Mas a poesia desaparece totalmente nos bebedouros. Por isso sempre evitei coloca-los na varanda de casa; não gosto da idéia de ter esses belos pássaros rondando, como junkies desesperados, atrás de sua dose diária de glicose. Além disso, o açúcar deve ser fresco, trocado diariamente, senão cria fungos letais.
Assim como a miséria humana, a saga desses drogaditos me atrai; mais pelos sórdidos aspectos sócio-etológicos que pela fugaz beleza de suas penas. Impossibilitado de freqüentar o bas-fond das grandes metrópoles recrio aqui essa tragédia com os colibris. E toda manhã. faça chuva ou faca sol, reabasteço o bebedouro.

Um comentário:

marcelo disse...

rs....muito interessante!
Não tinha pensado por esse lado
Vejo os Beija-flores como se fossem aqueles Gnomos de conto-de-fadas .
Doiditos e não drogaditos e mágicos!!!
Suas estórias são ótimas