2.04.2014

garçotas

Garçotas...



Publicado originalmente na Atualidades Ornitológicas
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Não se sabe ao certo quando surgiram pela primeira vez. Começaram a aparecer, simplesmente, talvez inofensivas; seus pequenos olhos negros, seguiam atentamente meus movimentos, sem que nada indicasse maldade. A única coisa certa é que o tempo todo mantinham o gado sob controle. A cada boi, cada vaca, uma pequena garça branca ao lado.

Agora o pasto oferece uma paisagem estranha de se observar. Gado nelore branco, capim braquiária verdinho e pequenas garças brancas acompanhando cada animal. Aparentemente existe uma relação muito forte entre eles. Impossível determinar o que se passa na mente de uma vaca. Provavelmente ruminar exige um esforço mental sobre-humano. Isso talvez explique o olhar bovinolácido, misterioso. A garça, por sua vez, com a cabeça fina e pescoço longo, camufla seus sentimentos e intenções.

O desequilíbrio ecológico tem como característica gerar alterações insuspeitas no funcionamento do mundo. Uma borboleta que voa aqui, uma tempestade que acontece na China; quem pode estabelecer relações causais? Pantanal, Jalapão, fragmentos de mata atlântica. 


De onde surgiram essas garças? O fato é que o gado deve ser abatido. A qualquer momento chegará o caminhão e centenas de reses deverão embarcar. Com seus olhares miúdos elas me encaram olho no olho e seu bico fino parece indicar uma saída. Difícil prever o comportamento desses animais; o estresse do embarque, a perda das referências.

O sol forte me castiga os olhos. Sinto falta de óculos protetores. O capim reflete uma quantidade grande de luz e o gado branco, livre de carrapatos, aumenta o contraste. Pecuária deveria ser classificada como uma atividade de risco. Notícias esparsas vindas da região centro-oeste dão conta que em Matupá cidade de fronteira agrícola com a pecuária em expansão foram encontrados vaqueiros com os olhos vazados. O pânico se instalou, houve desespero e nenhuma explicação plausível.

Fala-se muito em desequilíbrio ecológico, mas pouco se estuda o desequilíbrio mental de certos animais...Afastadas dos juncos, alijadas de seus moluscos e peixes, o que restaria a essas pobres garças se não migrarem? Procurar junto a espécies mais fortes o abrigo que lhes foi tirado pelos homens? Adotar uma vaca pode parecer bizarro, mas talvez faça sentido: um fornecimento regular de carrapatos, a segurança do grupo, uma nova identidade sócio-ambiental. Sem falar na sombra. Para quem só olha o lucro, esse benefício pode custar os olhos da cara.


Arte de Guto Carvalho sobre foto de Edar Beaza
Guto Carvalho São Paulo-SP

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