12.27.2013

Por que observo aves?

Eu observo aves porque me sinto só. 

Solitário enquanto espécie, apartado da natureza pela cultura, isolado pela linguagem. Humanos podem conversar entre si, mesmo inimigos, mesmo que separados pela história, cultura, política. Entre dois humanos sempre existe a chance de uma conversa. A linguagem que nos une como espécie é a mesma que nos aparta da natureza. 

Diariamente, há mais de 50 anos, potentes radio-telescópios auscultam os céus em busca de algum sinal de uma vida inteligente (que tenha uma linguagem). Nada foi encontrado, nem um simples sinal, apenas silêncio. ETs também são parte da natureza e nem mesmo eles vieram falar conosco. Nada! Silêncio! Estamos sós! Terrivelmente sós.


Sabemos que baleias, golfinhos podem se comunicar, sabemos que pombos podem transmitir informações por vias culturais, mas nada disso é suficiente para nos integrar ao mundo animal. Continuamos absolutamente solitários em nosso balbucio. Claro que o comportamento animal é complexo e os significados inúmeros; claro que podemos entender, estudar e nos especializar em interagir com eles. Treinadores conhecem a fundo seus animais companheiros de trabalho. Etologia é uma ciência séria e muito aprendemos com o seu estudo! Ela é uma forma de manifestarmos a nossa compreensão dentro da nossa cultura. No entanto, falo aqui de uma outra dimensão maior que a etologia. Falo de um olhar não correspondido, de uma barreira imensa que nos separa. 



Pode-se retrucar que se eu tivesse um pouco de amor no coração, veria que nossos cães e gatos, companheiros do dia-a-dia podem, sim, compreenderem nosso sentimento e mesmo comunicarem-se de maneira efetiva. Sim, concordo, mas isso não significa qualquer entendimento nosso com o mundo animal. Pelo contrário, significa sim um cruel projeção de nossa psique sobre indefesos animais. Pets são uma forma de escravidão de nossa afetividade. Seres que perambulam como zumbis, enroscando-se aos nossos pés, mendigando afeto e alimento. Gatos tem personalidade, cães tem sexto sentido e emocionam no noticiário das sete ao ficar dias e dias parados a espera do dono, que morto e enterrado, jamais voltará, mas afora o que projetamos de nossa linguagem sobre eles, afora a casca do afeto, tudo que resta é o silêncio. 


A mesma linguagem que nos une com os pets, é que os prende e os condiciona. A liberdade de um animal selvagem é, enfim, a liberdade de não nos entender. Ninguém em sã consciência perde tempo observando pets. Gatos não tem nada a nos dizer, além de pobres metáforas de nossa subjetividade. OK, ok, com um pouco de boa vontade podemos ver uma pálida sombra do que foi o comportamento selvagem nesses animais domésticos. Domesticar é uma questão de compreensão e linguagem. Ninguém observa animais domésticos. Quando olhamos o gato fofinho que dorme enroladinho, observamos o humano que invade sua felina natureza perdida. Domesticar uma ave, então, é a suprema crueldade cognitiva, é roubar o direito a uma vida autônoma.

Mas veja bem, um mero tico-tico livre, selvagem, tem um repertório infinitamente mais rico se comparado com meus quatro gatos, que ainda assim insistem em comê-lo.



Observamos aves, pois elas nos contam histórias, nos abastecem de metáforas e de conhecimento. Observo aves, pois gosto do selvagem, do não humano. Quero enfim, me apartar da cultura. Entre um homem e uma ave livre não existe comunicação possível além do distanciamento e temor. Exatamente isso é que me encanta. Ao olhar uma ave livre imploro por esse estranhamento, que me inutiliza a cultura e me devolve à condição de natureza.








Observo aves, pois preciso me sentir vivo. Saber que alguém ainda é livre, que pode e vai voar, e sumir, desaparecer. Odeio ser guiado, passear com um guia ornitológico. Amo e odeio devo confessar. Odeio porque eles sempre sabem quem canta, e fazem aparecer aqui quem cantou. Que coisa mais aborrecida, previsível. Não! Quero andar sozinho, olhar pras aves com o mesmo sentimento que olho as árvores. Já viu alguém fazer playback de árvores? Algum Ipê respondeu? Alguma Peroba veio ver o que se tratava? Não! Não quero mais fazer playback, pois nesse simples ato a gente propõe uma comunicação com as aves. 


Não quero falar nada com os passarinhos, nem que estou invadindo seu território. Nem dizer que sou mais macho do que eles. De maneira alguma. Isso faria perder toda beleza e todo sentido do ato de observar.

Olho pra um passarinho pra esquecer da linguagem, pra esquecer do amor, do afeto, pra esquecer do humano. Quero ler somente seus traços de identificação, seu shape e fields marks. Quero que ave voe antes que eu a identifique. Quero um mundo onde o mistério ainda tenha espaço.


Não quero ver quem eu não vi, não quero buscar quem eu não observei. Quero andar no mato, livre e sentir que alguma liberdade ainda restou, liberdade de não saber, de não entender, de não identificar. Tudo bem se a minha lifelist sair prejudicada, tudo bem se faltarem algumas espécies. Nada mais aborrecido que tirar o olho do passarinho pra olhar o livro. Odeio guias de campo. Olhá-lo é perder tempo, perder concentração, perder o foco. Enfim, perder a urgência. Por isso mesmo eu odeio lifers. É muito melhor observar os passarinhos que já conheço e não perder tempo olhando pro livro pra tentar aprender ali na hora. Não quero tirar meu foco. Quero meus olhos livres de qualquer guia. Quero meus passinhos soltos, livres de qualquer linguagem.


Enfim, observar aves me traz o sentimento de urgência da beleza. O efêmero da vida. Ver ou não uma aves é questão de segundos. Elas voam... Se agora estão visíveis, em seguida desaparecem. É urgente desfrutar de sua beleza.




Um comentário:

Fernando Borges disse...

Guto Carvalho, me lembro de uma reportagem sobre vc na Terra da Gente. Fiquei impressionado com seu artigo. Sou "apenas" observador de aves, não tiro fotos, acho que por isso me identifiquei com trechos de seu artigo. Gosto muito das fotos que meus amigos do GOAC tiram, as belas fotos, os detalhes encantam todos e ajudam a divulgar a observação de aves, assim como registra espécies e também dietas, comportamentos, etc que eventualmente podem servir para os ornitólogos.
Mesmo assim gosto mais é de observar com binóculo, desde criança, só não gosto quando vejo colegas que visam apenas o interesse da fotografia, sem se envolver com a aves, muitas vezes se aproximando mto de ninhos e insistindo com play backs. Mas tenho esperança que um dia eles vão amar as aves mais do que amam as fotos.
Gosto da contemplação, amo observar aves bonitas que já vi, claro que gosto de ver uma espécie nova, mas esse não é meu objetivo principal. Abaixo a ansiedade na observação de aves. Quem sabe um dia a gente possa conversar pessoalmente. Saudações ornitológicas para 2.014 ! fernandoborgesbird@hotmail.com