1.06.2014

Triste Utopia

Enquanto o carro desliza pela estrada de terra, o termo mar de cana vem direto na minha cabeça. Tremenda injustiça. Mar é uma coisa cheia de vida, bio diverso, azul e com  ondas. As curvas de nível modulam a paisagem enquanto descemos a colina rumo a velha usina. Ruínas. A chaminé de tijolo aparente, testemunha um tempo de bonança. Uma centena de andorinhas nos fios elétricos, os olhos bem treinados indentificam as fileiras de  aves: Andorinha doméstica grande e Andorinha-pequena-de-casa. Ao fundo canta um joão-teneném, dois tizíus

Um brejo, corguinho, figueiras centenárias...  esse lugar devia ter sido um paraíso dos passarinhos, antes do sertão virar mar. Urubus posuam na velha chaminé. Tesourinhas nas ávores. Uma breve pausa, e logo a estradinha mergulha no canavial , enquanto os termômetros elevam-se a marca de 98ºF. 

Dois carros, um menino, duas senhoras, seis rapazes, todos passarinheiros, em busca do primeiro registro do triste-pia em terras paulistas. Passarinho, icterídeo, que migra de norte a sul das américas, fugindo dos rigores do inverno meridional. Um dos mais corajosos migrantes entre os songbirds americanos. 



Os dedicados passarinheiros da região utilizam alta tecnologia para procurar novos hotspots para observar. O brejo foi encontrado pelo google maps, o que faz todo sentido, pois é uma quase invisível depressão em meio à plantação. Ao seu redor uma faixa de reflorestamento, com vigorosas mudas de um ou dois anos. Visível pelo satélite, a mudança da paisagem dá seus passos iniciais.  A embaúba, bananinha de macaco, é árvore pioneira, de ciclo curto, cresce rápido e forma sombra para a recomposição da floresta. No topo um casal de aves, o binóculo ágil confirma a suspeita. Alí estão, logo de cara os tais passarinhos - a faixa característica na cabeça, porte de Garibaldi, penas estriadas, longas unhas. Identificação positiva, o grupo observa e tenta diferenciar os tais icterídeos entre a folhagem e um casal de tico-tico que ali pousou somente pra criar confusão. Observar aves é a arte da urgência. Enquanto penso isso, os bichos mergulham e a foto foi perdida no capim alto. 

Seguem-se três horas de sol e calor intenso. Casais de caboclinhos, águia pescadora, canário do mato, mergulhão pescador, freirinha... nada disso tira o foco do animado grupo. Cadê o triste-pia!!! 


Pausa para o almøço, parte do grupo fica, compromissos diversos, os outros persistem. Retorno ao mar de cana, a sede da fazenda, uma capela caindo aos pedaços, consagrada a São João, patrono da usina, mais canao, e enfim o brejo. Voltamos a procurar o tal passarinho... mas  no meio do caminho um canário-do-mato diverte-se com a fartura de sementes. 

Enquanto observo o canário, ouço gritos abafados de alegria. Levanto os olhos e vejo o grupo todo feliz, excitado! Sucesso, todos observam, fotografam. Hora de conferir o registro. O casal posa, voa, pousa e posa novamente. Luz de lá, luz de cá. Registro feito, sucesso na empreitada. 



Triste-pia e a gente festeja
Gustavo e Murilo

Alegria e companheirismo. O prazer de ver um trabalho generoso de um grupo de amantes das aves e da fotografia. Orgulho de fazer parte de uma geração que está mudando a história das aves brasileiras. 

Bobolink é o nome do passarinho nos Estados Unidos. O guia de campo, versão traduzida, apresenta a plumagem reprodutiva preto com amplas faixas amarelas. Apesar disso a identificação é positiva. Quanto tempo essa ave passou desapercebida por ai, voando baixo nos capinzais e brejos? 


Triste-pia - Bobolink

O mapa do ebird não deixa dúvidas, Bobolink voa do hemisfério norte em busca do verão,  e o registros da espécie revela um inusitado mapa da observação de aves em escala continental. Pra onde vai o bobolink???  

Utopia, aquele lugar que não tem lugar. O Brasil é a terra da utopia e esses migrantes por aqui se aventuram desde os tempos imemoriais, antes da usina, antes da capela, antes do sertão virar mar, desde o tempo das  andorinhas,  companheiras de viagem, aquelas que pousam nos fios.

Aqui nos tristes trópicos, aquele enorme contingente de passarinho desaparece, some das estatísticas e vira registro pontual. Triste utopia.  

Ano a ano, em busca de refúgio do inverno, em busca de uma vida melhor, os bobolinks migram para lugar algum, eventualmente terminam num brejo isolado, perdido no mar de cana. Movido por seus instintos, em breve eles devem partir, uma jornada de mais de 10.000 quilômetros pela frente. Ano que vem, como todo ano,  estarão de volta.  Ao redor do brejo, a estreita faixa reflorestada vai estar mais crescida,  e uma animada galera de observadores estará na espreita. 

Pois é... alhando ao longe, com um binóculo, a gente consegue ver alguma esperança. 


















Um comentário:

Roque Antonio Bachin ME disse...

Vendo sua foto do ilustre visitante, acho que é a unica que aparece dois indivíduos!!